Sunday, June 3, 2007

Observatório Imaginário

Procurei-te na biblioteca e foste a primeira pessoa que vi. Consegui o que queria: ver-te, saber que tinhas vindo. Inventei outro propósito de procura, se havia computadores livres para me entreter. Não. Desci.
Passei a tarde a jogar às cartas esbatidas sem nexo contra a mesa, porque o pensamento estava na imagem de ti e os olhos na porta que te esperava. Demoraste a aparecer. Terias terrivelmente saído por outro lado qualquer ou os meus olhos viam imaginação e perderam a realidade?
Corri acima pelas escadas para a biblioteca, ufa!, ainda lá estavas! Puxei uma cadeira e sentei-me ao teu lado tentando falsamente desviar a atenção para o teu trabalho e para as tuas amigas.
Falavas-me. Falava-te. Estamos unidos pelas palavras e pelos gestos que tardaram em aparecer. Iniciei com a ponta dos dedos o tacto suave e tímido nas tuas costas. Não o negaste, não fizeste por contrariá-lo.
Trabalhavas, olhavas o monitor e eu imaginariamente tinha a certeza de que estavas com mais atenção em mim.
Acabaste. Saímos e ficámos os dois. Não nos apetecia ir para casa? Talvez tenha sido mesmo a melhor desculpa para darmos a entender que queríamos estar um com o outro sem o dizer. Há gestos que valem mais que as palavras.
Sentámo-nos num banco do jardim, à sombra por tua escolha. A natureza queria-nos iluminados e por isso enviou moscas para nos mudarmos para outro ao sol.
Frente a frente, lado a lado, na obliquidade das linhas que nos ligavam os corpos, os nossos olhares traíam-nos. Deixavam sair a verdade que a boca não deixava sair. Olhares filtrados distraídos pelas brincadeiras nas palavras que proferimos para encher a acção.
"A árvore é feia", "O azul é cor primária", pediste que encarnasse o meu personagem do teatro, imitei-o quantas vezes pediste. "É fofo" e andavas com o "fofo" na boca porque não há pessoa mais fofinha que tu.
Sem querer, acho, descaíste a cabeça no meu ombro e rapidamente a levantaste, não conseguiste controlar o impulso que te ia na alma. Mas eu percebi. Beijei-te a face, tinhas os lábios cerrados que pareciam um íman pela força que tive que fazer para não precipitar o toque pelo qual os meus ansiavam. Percorri-te a face com a minha, acariciei-te a testa e a bochecha com os lábios e os dedos, o nariz com o meu, ternamente porque te queria minha como se algo frágil estivesse a guardar.
Beijei-te a outra face, fiz-lhe festinhas com a mão mas rapidamente parei pela constatação de que a minha mão estava fria, pelo calor que emanavas do rosto. Retirei-a e pegaste-lhe triste por ter parado e disseste que não estava fria e que não parecia mão de mulher como me tinham já dito. Fizeste-lhe festinhas, tiveste pena da minha mão, a parte do meu corpo maltratada pela circulação imperfeita que me atira as veias para fora da pele. Esfregaste-a e entregaste-te à condenação dos sentimentos. Tinha-te envolvida, os rostos juntos novamente, os teus lábios cerrados e o íman. Não sabia se querias. A força magnética do íman era quebrada se quiséssemos. Eu queria muito. O amor, não o beijo em si, movimentaste a cara quanto? 2 milímetros? Foi o suficiente para eu quebrar a força e receber o teu amor no beijo. Inocente de olhos fechados me beijaste, o tempo para nós parou, só o relógio continuou a andar.
A casa e o jantar esperavam-te, o relógio traiu-nos com as horas. Tinhas que ir. Despediste-te com um beijo e quis acarinhar-te o cabelo, sabia pela audição de um passado pouco distante que não querias que lhe mexessem, "Não queres que te mexam no cabelo, despenteiam-te", "Mas tu podes!" e beijei-te outra vez a acariciar-te o cabelo.
O céu foi o único espectador, imóvel como o nosso tempo, atento aos pormenores manchado pelas núvens que o queriam ocultar, ao céu e ao nosso amor.
Se é que é essa a palavra que nos exprime na relação ou se a relação que temos pode ser exprimida numa palavra.

6 comments:

skas838 said...

Lindo. E real imagino ;)

Nada fará tanto eco no tempo como a doce visão mental das memórias.

Acho que qualquer pessoa se revê nesse texto, no impasse, na dúvida, no 'devo, não devo..',a ténue linha do ter ou do perder. É das fases mais bonitas do amor.

Bjs**

SadFace said...

Bonito, ou melhor muito bonito. Está extremamente profundo, e o grau de descrição que leva tudo até ao ínfimo pormenor foi uma boa aposta... Está muito fixe o texto! E essa indecisão, toda essa incerteza, é o fogo invisível da paixão.. Que só é visível para quem o sente..

freespirit said...

É o amor nas pequenas coisas, nos gestos de pormenor que só quem ama dá conta, que torna o amor o sentimento que queremos constantemente sentir.

Ficcionar a realidade é a tarefa que me dá mais gozo na vida. Ficcioná-la na escrita e tornar a realidade o momento de ficção mais bonito que conseguirmos.

Obrigado pela visita! x)

Ai meu Deus said...

a realidade imita... a arte.

Abraço.

Anonymous said...

o amor é lindo n é freespirit? :)
é o melhor sentimeno k s pode sentir(principalmente correspondido) =)

força para tudo ;)^^

beijo**

Rafaela said...

As imitações nunca sao a mesma coisa... O texto está lindo, parabéns meu poeta :D