Saturday, May 9, 2009

Carta

Cairo, 7 de Agosto de 2037

Caríssimo Daniel,

Escrevo-te da varanda do quarto do hotel onde me tenho hospedado nos últimos dias. São 18 horas locais e o sol ainda me queima a pele o suficiente para me abrigar nesta sombra.
Hoje senti falta de dizer alguma coisa, senti a falta de sentir tudo o que devia ter sentido nos últimos anos da minha vida. Não é que pense que a minha solidão permitida tenha sido em si uma coisa ruim. Tudo tem o seu quê de bom e de mau - como me disse um professor, uma vez: "ninguém tem o monopólio da sabedoria nem do disparate". Não considero portanto a minha opção sábia nem disparatada. Claro que a frase não diz que em questões particulares não há disparate nem sabedoria, aplica-se ao geral, mas não me admito uma adjectivação nesse campo a tal opção de vida, porquanto que penso que que tais opções se devem mais ao que nos rodeia do que propriamente ao que nos está intrínseco.
Com o tempo, fui aprendendo que a normalidade é coisa de loucos, de quem pensa pouco ou se esconde de evidências. Na adolescência com os livros, a certa altura por simples desilusões e cada vez mais com os meus doentes.
Senti tudo isto hoje, ao visitar mais uma pirâmide, enquanto esperava na fila para entrar. A pirâmide alta, imponente, imune ao calor. A esfinge deitada, absorta, imune à confusão que a rodeava. E assim durante séculos, milénios. Lembrei-me de repente o quão estranho é tudo viver, passar e ir embora e a pirâmide e a esfinge ali - a ver toda a gente passar e morrer. Sou mais um que olha e se vai. Tem o ambiente ideal para sonhar, para se querer fazer parte de uma história mitológica e mudar a nossa parte do mundo. Mas em mim já não há esperanças, há o viver encostado à parede, com medo que o cansaço me faça cair, e olhar como a esfinge. Porém, olho as gentes passando e sei que lhes vou seguir o rasto. E não é por estar velho; os 48 anos que faço daqui a um mês e pouco não são por si só razão. Talvez esta viagem de sonho de criança tenha sido feita tarde demais. Sempre foi um dos meus destinos predilectos e só este ano me decidi a vir. Sinto de certa forma que perdi uma vida diferente ao não ter vindo cá com os meus 20 e quê anos.
De que vale lamentar, caro amigo? Todos sabemos que passado não se apaga. A uns é que é mais permitido pensar no futuro do que a outros. Eu já não posso. O meu conto de fadas perdeu-se algures entre o tempo e o espaço. Perdeu-se e perdi-o. E quem fazia parte dele somente eu perdi.
Espero que estejas a ter umas boas semanas de trabalho neste tempo de calor, ninguém te manda guardar férias para a neve!

Um grande abraço,

Pedro.

P.S. - Cancelei a semana de férias que me tinha reservado em S. Francisco e prolonguei esta estadia. Vou lá para o ano, se me não cortarem a linha da vida. Assim o espero.

10 comments:

Alma said...

Uma visão solitária do futuro...mas tu sempre gostaste de estar sozinho, dás-te tão bem ctg próprio q n queres mais ng :P

Joana Simões said...

Meu grande amigo, nem tudo é mau, nem tudo bom, mas desde que encontremos sempre os pontos cruciais da nossa exitencia, poderemos lutar e quem sabe vencer neste mundo de contrariedades! Tu como qualquer pessoa comete erros e se arrepende de algo ou põe algo em dúvida, que nunca imaginava colocar, mas a vida é mesmo assim! Temos apenas de ver o que queremos e lutar sempre e não nos arrependermos!

Em relação ao texto, bem, já tinha saudades de ler os teus textos, ando muito desnaturada, desculpa! Está muito bonito! Quem sabe se um dia não estarás mesmo em Cairo, nessa situação, mas a pensar algo diferente! Eu creio em ti! ès um amigo fantástico, com o qual posso contar e por isso mesmo espero que tb contes cmg! Sei que as horas de solidão são tramadas e por isso é que nos tens a nós, os teus amigos, para as preencher e fazer companhia!!!

Adorei o texto!!!

beijinhos*

fábio videira santos said...

O que fazer ao nosso tempo? Como escrever na História a nossa história? E como me posso projectar na corda desse mesmo tempo?

Até parados em frente da esfinge se escreve história. E no fim resta ela e nós não. Ou talvez sim: cabe a nós enchê-la de sabedoria e disparates, sempre.

Um abraço ao meu e ao teu futuro, meu caro. Estarei aqui para ver a tua história.

fs

joana s. said...

'Todos sabemos que passado não se apaga.'

AnaB said...

"Talvez esta viagem de sonho de criança tenha sido feita tarde demais. Sempre foi um dos meus destinos predilectos e só este ano me decidi a vir."

Espero MESMO que isto não me aconteça x)


«O meu conto de fadas perdeu-se algures entre o tempo e o espaço. Perdeu-se e perdi-o. E quem fazia parte dele somente eu perdi.»

Os contos de fadas fazemo-los nós. Só precisas de ir atrás dele, de o agarrares e de nunca mais o deixares ir ;)


*

Vera Costa said...

O texto é realmente algo de maravilhoso. E sabes porquê? Porque o estás a escrever agora, quando ainda só tens vintes anos. Ainda podes fazer esta viagem aos vintes e poucos anos, o teu conto de fadas ainda não está perdido. Tal como o miúdo do JumboBox,vais a tempo de teres o mundo na tua mão. Se quiseres e fizeres por isso, podes muito bem escrever esta carta ao Daniel com outra data e até com um outro discurso =)

Espero que este teu post tenha servido para reflectires sobre isso ;)

joana s. said...

Já não escreves aqui há bastante tempo..*

Ai meu Deus said...

Espírito livre, ;-)

Aquele abraço.

(desentorpeça a "caneta" -- o teclado).

Anonymous said...

O qe t deu? Ganhastes consciencia da tua nulidade? Menos mal

AnaB said...

abandonaste o blog?