Tuesday, May 15, 2007

Chuva que não molha

- Não tens medo?
Chove como se todas as portas do céu se tivessem aberto, como se alguém bem lá de cima ordenasse um segundo dilúvio para exterminar a corrupção do homem, ser que tanto tem de beleza como de destruição. Talvez este segundo venha acabar o que o primeiro, infelizmente, não conseguiu. É uma chuva que não molha.
- E o que tem sido a nossa vida a não ser medo? - respondo-lhe enquanto ela me olha com uns olhos cansados, que transparecem a sua pobreza de espírito, a chama da vida há muito que a abandonou, prolongando-lhe o calvário de uma vida que não soube ser vivida, nasceu morta. Ela treme, com as mãos por cima dos joelhos e, bem ao meu lado, olha pelo vidro do carro para a cascata que se está a desabar sobre o mundo, e que faz estremecer o veículo, à medida que eu acelero, com as gotas sonoramente a rebentarem no tejadilho. Ao longe começa-se a ver o mar, não o que está a precipitar-se sobre nós, mas o que já lá estava, no encontro com a terra. A falésia de onde víamos o pôr-do-sol infinitamente, atravessa-se no seu caminho, como um precipício de fim líquido.
- Tens a certeza?
Ela está nervosa, já sofreu tanto que receia sofrer ainda mais. E eu a pensar que a única coisa que tive sempre foram as minhas dúvidas, nenhuma certeza adquiri na minha existência, vagueei apenas pelas ruas da incerteza, que me bloquearam os sentidos e me impediram de sentir. Inconsolado, e deixando uma mão no volante, a outra procura a dela e quando estas se encontram assimilam-se num aperto estonteante, selado para a eternidade, nunca morreremos um para o outro.
- Eu já nasci com esta certeza! Todos nós! Não te preocupes, vai correr tudo bem.
A falésia encontra-se bem à nossa frente e o mar a rugir lá em baixo. Não paramos. Não é tempo para parar, mas para seguir em frente, o que vier, virá. Começamos a voar enquanto o carro, impulsionado pela gravidade, é engolido pelas águas em fúria. Olhamos um para o outro e acenamos afirmativamente, voltaremos a encontrar-nos.
- Até já!
Não estamos molhados; quem esteve seco tanto tempo nem se molhará no último instante. Não conseguimos respirar e tudo fica negro, é o fim de um ciclo, e o que importa, somos finalmente livres. Aqui onde tudo acaba, onde tudo principia, não há medo.
E lá fora a chuva continua a cair, sem molhar.

Fábio Santos

1 comment:

Anonymous said...

bem, parece que me decidi a comentar este texto, apesar de ja te ter dito anteriormente o que penso!!!!so queria deixar bem claro que sou uma fa dos teus textos..e agora sim vou estudar!!!beijinhos**

(pa ti tb pedro)